22 março 2006

*** Cordas eternas ***

A tecnologia de fabricação de violinos
atingiu seu auge nos anos 1700 – época
em que foram criados os Stradivarius

João Gabriel de Lima

A fabricação de instrumentos de arco constitui um caso raro de tecnologia
que atingiu seu ápice nos idos de 1700. Nenhum pianista profissional
trocaria um Steinway fabricado hoje, seguindo os avanços da engenharia
acústica moderna, por um Pleyel do século XIX, com sua sonoridade rala e
opaca – por mais que seu teclado tenha sido dedilhado por Liszt ou Chopin.
Com os violinos, violas e violoncelos ocorre o contrário. Os virtuoses
preferem instrumentos fabricados na cidade italiana de Cremona entre 1698 e
1730, período áureo do luthier Antonio Stradivari, que também assinava
Stradivarius. O israelense Itzhak Perlman, o maior violinista vivo, e Maxim
Vengerov, russo que é o atual pop star do instrumento, tocam em
Stradivarius. A alemã Anne-Sophie Mutter, musa da música de concerto, não
gosta que nada se interponha entre ela e seu Stradivarius – por esse motivo,
usa vestidos tomara-que-caia desenhados para ela pela grife Dior. O celista
franco-chinês Yo-Yo Ma abriu mão da oportunidade de comprar um Stradivarius
porque isso causaria um rombo nas finanças da família (essas raridades
costumam custar em torno de 1 milhão de dólares). Um mecenas, porém, comprou
para ele um violoncelo do mestre cremonense, e hoje Ma usa em seus concertos
um Davidov – os Stradivarius em geral são chamados pelo nome do primeiro
proprietário e, como os cães de raça, vêm com pedigree.

O que faz de um Stradivarius um Stradivarius? De acordo com o americano Toby
Faber, autor de Stradivarius – Cinco Violinos, Um Violoncelo e Três Séculos
de Perfeição (Editora Record, 39,90 reais, 278 páginas), trata-se de uma
mistura entre fetiche e razões puramente acústicas. Quando Stradivari
morreu, em 1737, ele era considerado um grande luthier, mas não maior do que
outros que haviam feito nome na mesma época, como Amati e Guarneri. A
mística em torno de seus instrumentos começou no fim do século XVIII, quando
o italiano Giovanni Viotti, pai da moderna arte do violino, adotou o
Stradivarius como sua marca predileta. Viotti era uma espécie de pop star de
seu tempo. Circulava entre a nobreza e as celebridades – foi amante de
Catarina, a Grande, da Rússia, e era amigo do escritor François-Marie
Arouet, o Voltaire. Sua influência transformou o Stradivarius num objeto de
desejo. Outro italiano sucedeu a ele no trono dos superviolinistas, o
lendário Niccolò Paganini. O genovês de quem se dizia ter pacto com o
demônio sentiu na carne – ou na auto-estima – a excelência dos Stradivarius.
Ele próprio preferia tocar num violino construído por outro luthier,
Guarneri del Gesù. Seu instrumento, ligeiramente mais tosco, era apelidado
de "canhão". Um de seus rivais na música era o virtuose polonês Karol
Lipinski. Um dia, os dois tiveram a oportunidade de duelar num concerto – e
Lipinski, dono de um Stradivarius batizado com o próprio nome, levou a
melhor. Paganini curvou-se à excelência do luthier cremonense. Fez mais que
isso: comprou um quarteto de cordas fabricado por Stradivari e batizou os
instrumentos com seu nome, para valorizá-los. Os quatro "Paganini" passaram
de mão em mão e hoje são usados pelo Quarteto de Cordas de Tóquio. Os
japoneses pagaram 15 milhões de dólares pelos instrumentos. As histórias do
"Lipinski", do "Viotti" e dos "Paganini" são narradas em detalhes no livro
de Faber.

A mística do Stradivarius não é, no entanto, apenas fruto das aventuras e
lendas que acompanham os instrumentos. Efetivamente, os violinos, violas e
violoncelos fabricados pelo luthier cremonense ainda soam melhor do que os
similares modernos, na avaliação dos virtuoses que os usam. Como isso é
possível? Não se sabe ao certo. Stradivari viveu mais de noventa anos, mas
não ensinou a ninguém a totalidade de seus segredos. Ao longo de três
séculos seus violinos foram pesados e medidos, e suas proporções
exaustivamente estudadas. Recentemente, eles foram esmiuçados de acordo com
os mais modernos recursos da ciência. Tudo em vão. A chamada difração de
raios X foi eficaz para decifrar a estrutura do DNA, mas teve pouco sucesso
em desvendar a química do Stradivarius. Costuma-se atribuir a sonoridade
ampla e cheia de nuances ao tratamento da madeira, que teria qualidades
acústicas superiores. Uns dizem que o segredo é o verniz, enriquecido com
cinzas vulcânicas. Outros defendem que é o fato de a matéria-prima,
originária de barcos venezianos, ter ficado anos embebida na água salgada.
Não há, no entanto, uma conclusão definitiva. Poucas áreas da ciência
acústica evoluíram tanto quanto a tecnologia de fabricação de instrumentos.
A exceção são os violinos, violas e violoncelos. Culpa de Antonio
Stradivari, que estava na vanguarda tecnológica em 1700 e continua imbatível
até hoje.

Revista Veja, Edição 1948 . 22 de março de 2006

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